domingo, 30 de março de 2014

REGINA DUARTE: DE NAMORADINHA A ÍCONE

A história da televisão brasileira não seria a mesma sem Regina Duarte. Exagero? Dificilmente, uma vez que em seu currículo constam alguns dos maiores fenômenos de audiência e popularidade da teledramaturgia nacional. O nome de Regina - nascida em Franca, no interior de São Paulo, filha de um militar e uma professora de piano - está nos créditos de "Irmãos Coragem", "Selva de pedra", "Malu mulher", "Sétimo sentido", "Roque Santeiro", "Vale tudo" e "Rainha da sucata", além da tríade de Helenas de Manoel Carlos que protagonizou de 1995 a 2006 - em "História de amor", "Por amor" e "Páginas da vida". Mesmo que jamais tivesse participado de mais de uma dezena de filmes e peças de teatro, a ex-Namoradinha do Brasil já teria seu nome escrito indelevelmente no coração e na mente de toda a população brasileira, mesmo daqueles que questionam seu posicionamento político - sim, Regina, como acontece com toda pessoa pública que tem a coragem de manifestar suas ideologias, passou por maus bocados graças ao patrulhamento ideológico que também já fez estragos nas carreiras de Marília Pêra e Cláudia Raia.

Nascida em 1947, Regina iniciou a carreira de atriz em 1965, tanto no teatro - em uma montagem de  "A megera domada" dirigida por Antunes Filho - quanto na televisão, na novela "A deusa vencida", de Ivani Ribeiro, ainda na TV Excelsior. Foi preciso que outras seis novelas pavimentassem seu caminho até a Globo, onde estreou somente em 1969, mas em grande estilo. Ela foi Andréa, a protagonista de "Véu de noiva", a primeira novela global que dialogava com a realidade brasileira, em detrimento dos melodramas absurdos de Gloria Magadan - autora mexicana que enfiava goela abaixo do espectador rocambolescas tramas passadas em países exóticos. Escrita por Janete Clair, "Véu de noiva" abriu a porta para tramas contemporâneas e modernas, que já eram rotina em outras emissoras desde "Beto Rockefeller" (1968, TV Tupi) e Regina estava lá, pioneira, junto a Cláudio Marzo, ao lado de quem, pelos anos seguintes, formaria um dos pares românticos seminais da TV brasileira. Em "Irmãos Coragem", eles viveram Duda e Ritinha - um jogador de futebol famoso e a namorada de infância com quem ele se vê obrigado a casar - e, apesar de formarem a segunda dupla romântica da novela, saíram antes do final para protagonizar "Minha doce namorada", de Vicente Sesso.


Foi a partir dessa novela, onde viveu a meiga Patrícia, que Regina começou a carregar o título de "Namoradinha do Brasil" - título esse que, apesar do carinho inerente, tornou-se um fardo a ser descartado para o bem do futuro de sua carreira. Apesar disso, ainda demoraria alguns anos para que Regina deixasse de lado a imagem de heroína impoluta que a acompanhava. Em 1972, ela protagonizou um de seus maiores sucessos. Na pele de Simone Marques, em "Selva de pedra" - mais uma mágica de Janete Clair no horário nobre - Regina conquistou o Brasil inteiro, com uma audiência até hoje impressionante: 100% dos aparelhos brasileiros estavam ligados no crucial capítulo onde Simone (que se fazia passar pela artista plástica Rosana Reis depois de ter sido dada como morta) é desmascarada pelo marido Cristiano Vilhena (Francisco Cuoco), a quem responsabilizava por seu atentado. O êxito da novela foi tanto que, embalado pela romântica "Rock and roll lullaby", a trama voltou ao ar em 1975 - em versão compacta enquanto a Globo gravava os primeiros capítulos de "Pecado capital" depois da proibição de "Roque Santeiro" pela Censura Federal - e em um remake, realizado em 1986 com Fernanda Torres no papel de Simone. Por melhor atriz que Fernandinha seja, porém, o sucesso não chegou nem perto do original: Simone Marques foi e sempre será Regina na memória dos espectadores.

Em 1973, uma nova parceira entre Regina e Cláudio Marzo chegou às telinhas: "Carinhoso", escrita por Lauro César Muniz com base no filme "Sabrina", de Billy Wilder, trazia a namoradinha da América no papel de Cecília, uma aeromoça dividida entre os irmãos milionários Humberto (Marzo) e Eduardo (Marcos Paulo). Sucesso de audiência no horário das 19h, "Carinhoso" teve que ser encurtada não por falhar em conquistar o público, mas sim porque Regina descobriu-se grávida pela segunda vez. Em abril de 1974, sua filha, a atriz Gabriela, veio ao mundo. Em maio, Regina já estava no elenco de "Fogo sobre terra", na pele de Bárbara, interesse amoroso de um dos personagens principais, o Pedro Azulão interpretado por Juca de Oliveira. O sucesso da novela - apesar da ação rígida da Censura - não impediu, porém, que Regina resolvesse finalmente dar uma virada na carreira. E, para surpresa de muitos, essa virada não começou na televisão, e sim no teatro. Na peça "Reveillon", de Flávio Márcio e dirigida por Paulo José, ela ousou ao interpretar Janete, uma prostituta que pouco ou nada lembrava seus doces personagens globais.


O retorno à TV só aconteceu em 1977 e dava prosseguimento a suas ambições de ser respeitada como atriz e não mais ser considerada apenas um símbolo romântico. "Nina", de Walter George Durst, foi apresentada às 22h e mostrava Regina como uma professora que, nos anos 20, lutava contra o absolutismo político de uma cidade do interior. O público não chegou a encantar-se, mas, persistente, Regina manteve-se firme em seus ideais. Viveu Branca Dias, a protagonista de "O santo inquérito", de Dias Gomes, no teatro em 1978 e em 1979 provocou a ira das senhoras de Santana com mais um de seus papéis icônicos: a socióloga que encarava um divórcio no seriado "Malu mulher", criado por Daniel Filho. Falando de temas-tabu com aborto, homossexualidade, orgasmo e masturbação, a série - premiada internacionalmente - incomodou os mais conservadores, mas deu à Regina a chance que ela sempre procurou de mostrar que seu talento ia além das mocinhas chorosas das telenovelas. Mas, apesar do imenso sucesso, Malu durou apenas dois anos. Depois disso, o público foi brindado com outro grande trabalho do trio que havia legado "Selva de pedra" à história: "Sétimo sentido", que estreou em 1982, foi escrita por Janete Clair e estrelada por Regina e Francisco Cuoco.

Em "Sétimo sentido", Regina vivia a paranormal Luana Camará, que incorporava a atriz italiana Priscilla Capricce e se envolvia, quando em transe, com seu pior inimigo, o advogado Tião Bento (Cuoco). Uma das grandes novela dos anos 80, "Sétimo sentido" nunca chegou a ser reprisada - Canal Viva, que tal essa surpresa ao público? - e, como curiosidade de bastidores, um dos capítulos mostrou, integralmente, uma apresentação de "O santo inquérito" estrelada por Capricce (coisa inimaginável hoje em dia, com a audiência sendo medida segundo a segundo e transformando qualquer novela em um jogo interativo com uma plateia frequentemente mal-acostumada com a mediocridade). Mas, depois de mais esse gol de placa, Regina voltou a ousar: rompeu com a Globo e foi produzir um seriado independente, "Joana", no qual ela vivia uma repórter investigativa. Apresentada na Rede Manchete - e depois no SBT - a série não chegou a ter uma audiência representativa, mas mostrava que, como atriz, ela não se prendia a uma zona de conforto.


Em 1985, veio aquele que se transformaria em mais um papel inesquecível e marcante: a viúva Porcina da novela "Roque Santeiro" - co-escrita por Dias Gomes, Aguinaldo Silva e Marcílio Moraes - deixou o país de boca aberta. Desbocada, quase amoral, espalhafatosa e dona de um humor jamais visto em uma interpretação de Regina, Porcina ditou moda, virou mania e dizimou toda e qualquer dúvida que ainda pudesse haver sobre a versatilidade da atriz. Ninguém poderia imaginar que seu próximo papel na tv - por mais diferente que pudesse ser - ela voltaria a monopolizar a atenção do país. Em 1988, Raquel Aciolli, uma mulher com honestidade à toda prova que precisava lutar contra a ambição desmedida e amoral da única filha (Glória Pires) na novela "Vale tudo" - de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères - tornou-se o símbolo de um país cansado da corrupção, da impunidade e do "jeitinho brasileiro". Por mais que as vilãs da novela - a Fátima de Glória Pires e a Odete Roitman de Beatriz Segall - tenham conquistado mais a atenção do público, é inegável que a força da novela (que voltou a chamar a atenção em sua reprise no Canal Viva) se mantém intocada, graças à força do texto, à direção inspirada e a algumas cenas antológicas - quem consegue esquecer da infame cena da prova do vestido de noiva, em que Raquel desmascara sua filha diante da futura sogra?


O trabalho seguinte de Regina Duarte na Globo foi outro sucesso retumbante: "Rainha da sucata", de Sílvio de Abreu, contava a trajetória de uma bem-sucedida empresária do ramo do ferro-velho, Maria do Carmo, em conquistar seu amor de adolescência, o ricaço decadente Edu Albuquerque Figueroa (Tony Ramos). Equilibrando o texto com um humor sofisticado e ingredientes do mais puro melodrama, a novela obteve ferrenha concorrência com "Pantanal", da TV Manchete, mas chegou a seu último capítulo com uma audiência animadora e elogios unânimes à protagonista de Regina - mais uma mulher dotada de seu irresistível carisma. Antes, porém, de voltar às novelas, Regina tentou novamente emplacar um seriado: "Retrato de mulher" lhe dava a oportunidade de viver uma personagem diferente a cada episódio e ser dirigida pelo então marido Del Rangel. A repercussão não foi das mais entusiasmadas, mas, em seguida, uma nova personagem conquistaria o país.


"História de amor" foi o primeiro encontro entre Regina e as Helenas de Manoel Carlos. Como uma mulher divorciada que se apaixonava por Carlos (José Mayer), um médico recém-casado com a fútil socialite Paula (Carolina Ferraz), ela casou-se perfeitamente com o texto naturalista e poético de Maneco - a ponto de, segundo ela mesma, não querer que a novela acabasse nunca. Como isso não foi possível, ela teve seu pedido atendido de outra forma: uma nova Helena, no horário nobre, e ao lado da filha Gabriela. "Por amor" novamente atingiu grandes índices de audiência ao contar a dramática história de uma mãe capaz de um grande sacrifício - entregar o bebê recém-nascido à filha mais velha, que acaba de perder o seu - mesmo que isso signifique perder o homem que ama (no caso, o Atílio interpretado por Antonio Fagundes, que já havia sido seu par romântico em "Nina" e "Vale tudo").

Antes que a terceira Helena surgisse em sua carreira - na novela "Páginas da vida", de 2006 - Regina voltou a contracenar com Gabriela na minissérie "Chiquinha Gonzaga", em 1999 e com Glória Pires, na fracassada "Desejos de mulher", onde viveu a estilista Andréa Vargas. Sua terceira parceria com Manoel Carlos foi um de seus últimos papéis de destaque. Na tenebrosa "Três irmãs", ela foi ignorada, assim como todo o elenco, que incluía Cláudia Abreu, Giovanna Antonelli e Carolina Dieckman. E no remake de "O astro", exibida em 2011, ela viveu Clô, a esposa/viúva/assassina do empresário Salomão Hayalla (Daniel Filho, que já havia sido seu marido em "Vale tudo"). Seu trabalho foi, provavelmente, um dos destaques da macrossérie e é, até hoje, sua derradeira aparição na tv.

Mas, além de ser uma atriz carismática e indiscutivelmente uma das mais importantes das artes cênicas nacionais, Regina Duarte também não é mulher de ficar quieta quando trata-se de posicionamentos políticos. O ápice das polêmicas ocorreu em 2002, quando gravou um depoimento, exibido no horário eleitoral gratuito, onde afirmava ter medo do futuro do Brasil caso Lula fosse eleito presidente. Sua frase no vídeo - "Eu tenho medo!" - ganhou as páginas dos jornais e o mundo artístico, tão afeito ao já citado patrulhamento ideológico, não perdoou suas declarações - o que não a impediu de reiterá-las em uma entrevista de 2006. O caráter firme de Regina também ficou óbvio em 1974, quando, eleita pelo Troféu Imprensa como a melhor atriz do ano de 1973 por "Carinhoso" - sua quinta vitória - ela recusou o prêmio, oferecendo-o à Eva Wilma por seu desempenho na primeira versão de "Mulheres de areia". Generosa, talentosa e carismática, Regina Duarte é, sem sombras de dúvida, um das maiores estrelas do nosso país e um ícone da teledramaturgia brasileira.